Justa Nobre: “Eu sofri imenso para criar o meu filho e ele também sofreu nas mãos de empregadas e amas. Não queria sofrer por outro”

Justa Nobre: “Eu sofri imenso para criar o meu filho e ele também sofreu nas mãos de empregadas e amas. Não queria sofrer por outro”

Com 66 anos de idade e 45 de carreira, Justa Nobre é uma das chefes de cozinha mais prestigiadas de Portugal e conta com um impressionante legado de receitas. Foi jurada do programa da RTP Masterchef Portugal, em 2011, e, este ano, foi condecorada com o Prémio Carreira do guia Boa Cama Boa Mesa

Em entrevista ao Podcast Gender Calling, Justa Nobre conta que deu os primeiros passos na cozinha ainda criança e, desde aí, não mais parou: “O gosto pela cozinha vem desde miúda. Vinha da escola e destapava as panelas para provar a comida e opinar. Com 8/9 anos, ia à capoeira, matava um frango e cozinhava-o. Eu nasci com aquela veia para a cozinha e para ser cuidadora. Para mim, cozinhar para os outros é uma maneira de cuidar, de amar, de tratar bem as pessoas, não é um sacrfício”. 

Aos 15 anos, a futura chefe de cozinha foi de malas e bagagens para Lisboa, onde começou por trabalhar como cuidadora de uma criança numa família e, mais tarde, depois de casar, iniciou o seu percurso profissional como cozinheira: “Com 15 anos, percebi que queria ir para Lisboa para ganhar dinheiro e mudar de vida, e vim com os meus sonhos. Fui contratada para fazer companhia a uma menina com paralisia cerebral e fui muito feliz. Depois, casei aos 19 anos. O meu marido era empregado de escritório e o chefe dele decidiu abrir um restaurante. Ele sabia que eu cozinhava bem e convidou-me para ir tomar conta do restaurante ("33") e eu disse que gostava muito de cozinhar, mas que não sabia tomar conta de um restaurante. Disse-lhe que podia contratar-me como segunda cozinheira, mas ele disse que eu ia tomar conta. Tinha 21 anos, acabada de casar, pouco dinheiro, queria melhorar a nossa vida e, por isso, aceitei”, revela Justa. 

Foi no restaurante "O 33" que a convidada do Podcast cresceu enquanto profissional e criou muitas receitas mas, ao fim de 8 anos, sentiu necessidade de ir mais longe. Acabou por ir trabalhar, juntamente com o marido, para um restaurante maior, onde poderia “alargar os seus horizontes”: “Tive bastante liberdade (no "33") para fazer receitas. Cresci lá. Eu sabia fazer meia dúzia de pratos e, como sempre gostei de andar em competição comigo, à tarde ia para o fogão experimentar outras coisas. Ao fim de 8 anos, comecei a sentir-me parada. Não tinha as asas cortadas, mas ali não havia muito por onde voar. Entretanto, um senhor que queria abrir um restaurante em Carcavelos queria levar-me para lá. Eu vi que aquilo era um restaurante grande e queria tomar conta de uma coisa a sério, queria alargar os meus horizontes na cozinha e aceitei”, conta.

"Virei-me para o meu marido e disse: ‘Já chega de trabalhar para os outros! Vamos à procura de um restaurante para nós.’ E fomos!"

Mais tarde, Justa e o marido decidiram arriscar e abrir o seu próprio negócio e foi aí que o “Império Nobre” começou: “Tivemos 1 ano nesse restaurante (de Carcavelos). Foi muito giro. Adorei! Entretanto, virei-me para o meu marido e disse: ‘Já chega de trabalhar para os outros! Vamos à procura de um restaurante para nós.’ E fomos! Despedimo-nos, fomos para casa de um amigo passar férias e pensar no que íamos fazer e depois apareceu-nos um restaurante na Rua de São Bento, o "Constituinte", em 1988”, revela a entrevistada. 

Apesar da sua grande paixão pela cozinha e de tudo o que conseguiu construir nas últimas quatro décadas, Justa confessa que nem sempre foi fácil conciliar a vida pessoal com a profissional e que alguns sonhos tiveram de ficar para trás, nomeadamente o de ter mais filhos: “Era complicado. Eu sofri imenso para criar o meu filho e ele também sofreu nas mãos de empregadas e amas. Eu não tinha cá (em Lisboa) ninguém para me ajudar a tomar conta dele e o meu marido tinha o mesmo emprego, o mesmo horário e as mesmas folgas que eu. Eu pensava muito no facto de querer ter um filho e como é que ia fazer para o criar. Inicialmente, ele ficava no infantário. Depois, consegui contratar uma empregada interna. Eu sofri por um e não queria sofrer por outro também. A partir dos 8 anos dele já foi mais fácil. Consegui pôr mais gente na cozinha do "Constituinte" e pude dar-lhe mais assistência”, recorda.

“As mulheres têm mais dificuldade por causa da vida familiar, mas não têm de ter medo. Nós temos as mesmas capacidades que os homens. Por vezes, só não temos quem nos dê as mesmas oportunidades. Mas quando as há, as pessoas que se lancem, que mostrem o que valem"

Enquanto mulher, num mundo onde os homens são muito mais vezes reconhecidos pelo seu trabalho, Justa alerta para a importância de as mulheres saberem que têm as mesmas capacidades que os homens e para não perderem as oportunidades que lhes surjam: “As mulheres têm mais dificuldade por causa da vida familiar, mas não têm de ter medo. Nós, mulheres, temos as mesmas capacidades que os homens. Por vezes, só não temos quem nos dê as mesmas oportunidades. Mas quando as há, as pessoas que se lancem, que mostrem o que valem. Há muitas mulheres boas cozinheiras. Não tenham medo”, aconselha.

Numa conversa leve e direta, Justa Nobre conta-nos o seu percurso enquanto cozinheira, as dificuldades que enfrentou, a alegria de ter sido jurada num programa culinário da televisão portuguesa e a importância de cuidar bem dos clientes para fazer um negócio singrar. 

Entrevista disponível no Podcast Gender Calling (em todas as plataformas).