Adama Baldé: “A mutilação genital feminina tem vindo a perseguir milenarmente as mulheres"

Adama Baldé: “A mutilação genital feminina tem vindo a perseguir milenarmente as mulheres"

Nascida na Guiné-Bissau e com apenas 25 anos, Adama Baldé é uma reconhecida ativista pelos direitos das mulheres, que tem como missão acabar com a prática da mutilação genital feminina – da qual também ela foi vítima – e trazer consciência para o tema da desigualdade de género. Sonha em tornar-se Secretária Geral das Nações Unidas e ser Presidente da República do país onde nasceu mas, acima de tudo, sonha com um mundo em que “meninos e meninas tenham os mesmos direitos”.

Adama é licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, já trabalhou em diversas organizações civis, foi a primeira mulher Vice-Presidente da Rede Nacional das Associações Juvenis da Guiné-Bissau e criou o movimento “Mulher não é Tambor”, através do qual pretende alertar para o aumento de casos de violência doméstica na Guiné-Bissau.

Nesta conversa no Podcast Gender Calling, a ativista começa por falar sobre o problema da desigualdade de género a nível político, presente no seu país natal, e para o facto de que, mesmo com a existência de leis que pretendem combater esta questão, na prática, a concretização não está a acontecer: “Por mais que existam leis de paridade, na prática isso não se verifica. Não se verifica, porque não existe apropriação de mulheres de partidos políticos (…) e a própria lei também é muito vaga. A lei nasceu, mas sem grandes sanções. As sanções que são impostas podem não ser cumpridas e não trazem grandes consequências para o partido. (…) Depois, há ainda a questão do machismo estrutural que existe no país”, conta a entrevistada em entrevista a Catarina Marques Rodrigues.

Para além das questões de género no contexto político, Adama adverte-nos para outros problemas estruturais e sociais da Guiné-Bissau - que afetam, profundamente, mulheres e meninas - nomeadamente, a prática da mutilação genital feminina que é para a nossa entrevistada um tema pessoal e de grande importância: “É uma questão muito importante para mim porque, primeiro, eu fui vítima de mutilação genital feminina. Conhecendo agora o conceito, que é 'qualquer intervenção feita no corpo da mulher sem autorização médica', eu considero que fui mutilada duas vezes. Mas esta questão é importante para mim, sobretudo, no sentido de poder afirmar os direitos humanos das mulheres, e das meninas poderem gozar os seus direitos sexuais reprodutivos de maneira digna. Que não sejam apenas uma pessoa que, no ato sexual, está a acompanhar o marido ou o namorado. Que possam sentir, ter prazer. É importante nós compreendermos que cortar os genitais femininos é cortar os direitos humanos”, remata.

A mutilação genital feminina foi, em tempos, uma prática cultural celebrada por diversas pessoas, mas é, atualmente, um crime público na Guiné-Bissau passível de sanção. Adama defende que o ritual não deve continuar a ser associado a questões religiosas: “Sim, antigamente era assim (um ritual festejado e feito de forma pública), mas agora não. Era uma coisa cultural associada a fatores religiosos, mas é importante dizer que se concluiu em vários estudos e investigações que a prática da mutilação genital feminina não é uma recomendação islâmica, não é da religião islâmica. Tem apenas um fator cultural em algumas localidades”, acrescenta.

É fundamental salientar que, de acordo com a ativista, os profissionais de saúde têm um papel fundamental enquanto fiscalizadores – no sentido de verificarem se as crianças continuam a ser submetidas à prática, que é um crime -- e há urgência na criação de novas estratégias para que estes profissionais passem a ter um papel mais ativo na luta contra a mutilação genital feminina: “Quem tem mais responsabilidade (de fiscalização) são os profissionais de saúde, inclusive, são citados na lei. A lei diz que os profissionais de saúde devem revistar as crianças dos 0 aos 5 anos, o que não acontece muitas vezes. A lei por si só não basta, tem de se criar novas estratégias de acompanhamento”, defende Adama Baldé.

A ativista ressalta, ainda, que cada pessoa pode ter um impacto crucial na mudança de mentalidades e, consequentemente, nos valores e crenças sociais através de um discurso que promova a igualdade, como aconteceu no seio da sua própria família: “No meu caso, por exemplo, isto (a prática da mutilação genital feminina) já não existe na minha família. Eu tento criar debates com os meus irmãos e temos as nossas sobrinhas que não foram submetidas, e mesmo outras crianças da vizinhança já não foram. Isto significa que, a partir de uma pessoa, é possível quebrar as regras, as culturas negativas. Claro que é importante conservar a parte religiosa, mas chegando à conclusão, junto das pessoas que ainda praticam, de que a mutilação genital feminina não faz parte das práticas religiosas, conseguimos salvar vidas e mais meninas nas nossas famílias”, remata.

Numa conversa tocante, Adama Baldé fala-nos sobre o seu percurso de vida, as suas conquistas e sonhos profissionais, a importância que a família tem para si, a religião, a desigualdade de género que ainda existe na Guiné-Bissau e o que é preciso fazer para combater esta realidade no país e no mundo.

Catarina Marques Rodrigues entrevistou Adama Baldé na Guiné-Bissau.

Entrevista disponível no Podcast Gender Calling (em todas as plataformas).