Carolina Pereira: “A ação humanitária não tem de ser 100% altruísta, mas temos de ser críticos em relação a ela”

Carolina Pereira: “A ação humanitária não tem de ser 100% altruísta, mas temos de ser críticos em relação a ela”
Carolina Salgueiro Pereira é embaixadora em Portugal do movimento HeForShe, criado pela Organização das Nações Unidas.

Apaixonada pelas causas sociais e ativista de diferentes movimentos, Carolina Salgueiro Pereira conta com um percurso já extenso enquanto voluntária e empreendedora social. Já trabalhou em diferentes continentes, fundou vários projetos, esteve 3 anos a trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU) e confessa que a sua missão é “ter o maior impacto possível” em lutas como o feminismo, a igualdade de género e o racismo.

Carolina Pereira começou o seu percurso profissional pelo surf e foi este desporto que a inspirou a criar o seu primeiro projeto social: “Eu sempre fiz voluntariado, desde muito nova. Fiz no Movimento Transformers, na SOS - Salvem o Surf, entre outros. Na altura, criei um projeto chamado My Destiny, que já não existe, mas que aliava as minhas duas paixões: ter impacto social e o surf, que era o que eu fazia na altura. No fundo, era um programa educacional, que tentámos levar para diferentes países. Queríamos, através do surf, tirar crianças das ruas. Tentámos fazer o projeto na Indonésia, Índia, Brasil e Panamá. Este projeto foi a minha escola para o mundo do empreendedorismo social”, admite. 

Há quem viaje para surfar. E se for também para ajudar?
Foi sozinha para a Indonésia, passou por histórias “do arco da velha”, achou que não voltaria e esteve na Índia a ensinar crianças a surfar. Aos 21 anos, Carolina quer mudar o mundo através do surf.

Aos 19 anos, o surf valeu à entrevistada do Podcast Gender Calling um bilhete de partida para Índia, um dos países onde fez voluntariado e fundou a sua associação Sathyam Project, que trabalha com meninas e mulheres: “A minha ligação com a Índia começou aos 19 anos com um convite para um Festival Internacional de Surf. Eu era surfista e, na altura, simplesmente pesquisei que coisas é que existia perto do sítio do festival, e percebi que existia um orfanato só de raparigas. Já na altura eu queria trabalhar com raparigas e mulheres em situações desfavorecidas, então voluntariei-me. Trabalhei com meninas do orfanato, mulheres que tinham sofrido ataques de ácido pelos maridos e fiquei sempre com a sensação de querer dar algo de volta à Índia, mas nunca voltei à zona do orfanato. Acabei por voltar a fazer voluntariado com uma amiga noutra zona, onde agora temos a nossa associação Sathyam Project. Fomos lá todos os anos para fazer voluntariado e acabámos por decidir abrir lá uma associação cujo único objetivo é servir de facilitadora para aquilo que as mulheres daquela comunidade querem que aconteça, para a mudança que elas querem que aconteça na vida delas”, explica Carolina. 

Relativamente ao trabalho voluntário, Carolina defende que a ação humanitária não tem de ser totalmente altruísta, mas acredita que se deve ter uma postura crítica em relação à ajuda que prestamos: “A ação humanitária não tem de ser 100% altruísta, mas temos de ser críticos em relação a ela. É normal sentirmo-nos bem em ajudar e isso fazer-nos bem a nós. Eu tiro muito sempre que vou à Índia, sinto-me bem em ir a um protesto, sinto-me validada, sinto-me ouvida, sinto-me empoderada, sinto-me útil. Acho que foi nos contextos de ação humanitária em que eu estive envolvida que mais vezes me senti a melhor versão de mim mesma. No entanto, isso não invalida que não sejamos críticos em relação à nossa ajuda. Por exemplo, sempre que alguém se candidata para fazer voluntariado na Sathyam, eu e a fundadora perguntamo-nos como é que isso vai ter impacto nas raparigas, como é que vai beneficiá-las. Fazer voluntariado não é passar férias, tem de haver um objetivo específico”, remata em conversa com Catarina Marques Rodrigues.

Depois do trabalho que desenvolveu na Índia, a empreendedora recebeu um convite para trabalhar com a ONU, uma organização que a marcou profissionalmente, mas que confessa não ter tido o impacto que esperava: “Acabei por ganhar um prémio, graças ao trabalho na Índia, e ter uma mentora da ONU Mulheres. Com essa mentora, vieram os convites para, mais tarde, trazer o HeForShe para Portugal, que é um movimento da ONU Mulheres para a igualdade de género. Depois do HeForShe é que surgiu o convite para trabalhar nas Nações Unidas. Eu estive num departamento 100% focado em comunicação e em mobilizar pessoas do digital para o offline para criarem as suas ações. (...) Adorei esta experiência, mas, de facto, sentia-me muito longe daquilo que é o impacto, porque, por um lado, foi sem dúvida o sítio onde eu estive a trabalhar com maior número de pessoas, mas, por outro lado, não me sentia tão conectada com o trabalho que estava a fazer. O meu impacto pessoal direto não era assim tão grande. Sentia que estar ali eu ou outra pessoa qualquer, era igual”, desabafa em entrevista.

Para além disto, Carolina criou diversos projetos pessoais - sempre no âmbito do empreendedorismo social - e admite que a necessidade constante que tinha em criar coisas novas provinha de alguns padrões pessoais: “Eu sinto que cometia vários erros (nos meus projetos) como, por exemplo, evitar conflitos e ter muitas dificuldades em falar sobre dinheiro, ter muitas dificuldades em confrontar alguém. Eu preferia fugir aos problemas e criar uma coisa nova do que enfrentar. Criava um projeto de raiz para evitar uma conversa, se fosse preciso. Isto era ridículo. Não percebia, na altura, porque é que os meus projetos chegavam sempre a um ponto de estagnação. Hoje, olho para trás e já percebo o padrão”, revela a ativista.

Neste sentido, a entrevistada alerta para a importância da humildade e de desenvolvermos a capacidade de olhar para as nossas ações, de modo a alcançar o sucesso nos projetos profissionais e nas relações interpessoais: “Temos de ter a humildade e a capacidade de fazermos uma desconstrução de nós mesmos. Questionarmos: ‘Qual é que foi o meu papel naquele projeto que falhou?’. Só assim é que consigo perceber se fui eu, o que é que fiz bem, que padrões posso melhorar ou se foi uma questão de mercado, se o projeto não tinha espaço para existir”, exemplifica. 

Numa conversa sobre ativismo, voluntariado e empreendedorismo social, Carolina Salgueiro Pereira traz-nos a perspetiva de quem já viu realidades muito diferentes entre si e de quem procura, em cada projeto que cria e em cada ação humanitária em que participa, deixar o mundo melhor. 

Entrevista disponível no Podcast Gender Calling em todas as plataformas de áudio.